FALA FENATIFS

Confira o que os críticos estão comentando sobre a 13ª Edição do FENATIFS - Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana

OS ACERTOS E OS APRENDIZADOS DE UM FESTIVAL ONLINE DE 'TEATRO'

Por Dib Carneiro Neto

A lição do 13.º Fenatifs, de Feira de Santana, festival capitaneado pela Cia. Cuca de Teatro e realizado pela primeira vez, de forma online, neste mês de dezembro do fatídico ano de 2020, foi o seguinte: “Estamos (re)aprendendo todos juntos”

Leia a matéria completa aqui!


CRÍTICAS/COMENTÁRIOS CRÍTICOS SOBRE OS ESPETÁCULOS DO 13º FENATIFS (online)

A BANDA DO JERÔNIMO... E OTRAS COSITAS MÁS

A reger notas e excentricidades

Circo Caramba (SP) abre programação do 13º FENATIFS com o palhaço-músico Jerônimo

Por Leidson Ferraz*

Assim que eu me deparei com a figura do palhaço-músico Jerônimo, do Circo Caramba, de Campinas (SP), e sua parafernália sonora aplicada ao corpo, num exemplo do chamado “homem banda”, uma série de reminiscências aconchegantes vieram à minha mente. Lembrei não só do artista gaúcho Mauro Bruzza, da Cia. UmPédeDois (escrito assim mesmo), que tive a honra de divulgar na programação do 8º Festival de Teatro de Rua do Recife, em 2010, mas também das minhas idas àqueles circos que mambembavam pelo interior de Pernambuco, de onde venho, com suas inusitadas figuras que enchiam de alegria minha infância. O número dos palhaços era sempre o mais aguardado. E muitos daqueles eram excelentes músicos.

É o caso deste Jerônimo, palhaço do artista Thiago Sales. Vi em uma entrevista que ele confessou que a sua personagem nasceu a partir do músico que ele queria ser. Quem ganhou fomos nós. No espetáculo-live A Banda do Jerônimo... E Otras Cositas Mas, apresentado como o primeiro da programação 2020 online do 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana), que vi da minha casa, como todos os outros espectadores que acompanharam a exibição, ele nos convida a aprender e ouvir mais sobre música com instrumentos excênticos. Como não se deleitar com um palhaço mais do que simpático e que se dá ao direito de ser uma banda completa fazendo seu som para lá de inusitado?

Sem edição nenhuma de vídeo e utilizando câmera parada, ou seja, com recurso muito simples, Jerônimo dá conta de toda a diversão e instrução ali propostas. O mais legal é que, para além do caráter didático (no melhor sentido da palavra), pois a cada inserção de novo instrumento ele dá pistas do material utilizado e de como passa a usá-lo para fazer surgir notas musicais, o palhaço contextualiza bem o momento que vivemos, encarando com naturalidade as necessidades da situação mundial atual, como o distanciamento dos corpos, o uso das máscaras e a possibilidade de se conectar artisticamente pela telinha, além de tirar sarro até das fake news e dos vírus de computador. A apresentação, inclusive, brinca várias vezes com o próprio nome do FENATIFS.

Jerônimo tem como parceiro o Brunão, um DJ que lhe dá as bases musicais para ele improvisar o seu som excêntrico. Para isso, usa uma parafernália de instrumentos que vai de uma guitarra-bacia-apito à buzina-axila, de um pente-gaita até um baldão de lixo-bumbo, isto sem contar os vários objetos de percussão distribuídos dos seus pés à cabeça. Montando e desmontando-se para uma sequência de números musicais, o palhaço demonstra não só as atrapalhações próprias deste divertido universo, mas toda a ingenuidade e carisma de sua figura, sem malícia alguma e bem receptivo a exibir seu arsenal de traquitanas com bastante graça. Dos números mais inusitados, o uso de uma bomba de bicicleta, de um serrote com arco e das taças que emitem vibração de onda sonora com a ponta do dedo friccionada no entorno das suas bordas.

O vídeo traz variados estilos musicais – do erudito ao popular, do sambinha ao rock psicodélico, passando pelo frevo e uma homenagem a Beethoven, Strauss, Bizet e, claro, às cantigas de roda e clássicos do cinema – e algumas caraterísticas saltam aos olhos quando o examinamos mais atentamente: a ótima relação que se precisa manter com outro profissional parceiro para fazer arte; o caráter da reciclagem de material, dando-lhe nova utilidade; a importância da poesia para se deixar encantar; o valor dado ao sonho – imprescindível para seguir em frente – e, melhor, a necessária cumplicidade da palhaçaria com a plateia. Ou seja, um belo momento para nos embalarmos com um palhaço-músico-maestro que sabe reger bem não só sua engenhoca musical, como os espectadores que o assistem, brincando até com a ideia de claque (imagino o quão instigante deve ser acompanhá-lo ao vivo) e da interação mais do que bem-vinda. Afinal, mesmo em vídeo, duvido que alguém não tenha se dado ao direito de gritar o “Miau!” solicitado. E os aplausos, claro, foram bem merecidos.

*Jornalista, crítico, historiador e pesquisador do teatro.


A CASATÓRIA C'A DEFUNTA

Para vencer a Morte e até mesmo a carência de teatro na pandemia...

Cia. Pão Doce de Teatro (RN) transpõe, com muita inventividade, “A Casatória c’a Defunta” da rua para a telinha

Por Leidson Ferraz*

Confesso que eu tinha restrições terríveis a este teatro possível em tempos de pandemia. Avesso à tecnologia, não queria acompanhar lives e exibições do teatro-vídeo (!) que hoje temos, mas foi com a transposição do espetáculo A Casatória c’a Defunta, da Cia. Pão Doce de Teatro, de Mossoró (RN), originalmente de rua, que um novo clarão artístico se abriu. Eu, que já tinha conferido a peça no seu formato inicial, fiquei embasbacado com a criatividade da trupe ao levá-la para o universo do vídeo, ainda em experimentação inicial ao resultado que pudemos acompanhar neste 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana), com sua programação totalmente online. Da montagem original, ficaram não só a graça, a beleza plástica e musical, a autêntica propriedade no uso de elementos da cultura nordestina, daquela que vem das brenhas do nosso país, mas a inventividade que dialoga muito bem com os recursos técnicos exigidos na telinha.

A Casatória c’a Defunta é fruto do teatro de grupo. Ou seja, é resultado de compromisso em conjunto, vivência contínua, aprendizado e sonhos compartilhados por anos de dedicação lado a lado. Tudo isso salta aos olhos. A montagem, com atuação de Mônica Danuta, Paulo Lima, Lígia Kiss, Raull Davyson e Romero Oliveira, cuja estreia aconteceu em 2014, já percorreu dezenas de cidades por todo o país e é um bem acabado exemplo do melhor teatro que se faz no Nordeste brasileiro. Com ótimo texto de Romero Oliveira e direção precisa de Marcos Leonardo, a obra nos leva a conhecer o mundo dos vivos em que dois jovens são obrigados a se casar mesmo sem se conhecerem, prática comum no terreno familiar impositivo, e o mundo dos já falecidos onde uma noiva assassinada ainda sonha em ganhar um par. Neste diálogo de universos fantasmagóricos, a gente ri das desventuras do jovem Afrânio e sua apaixonada Maria Flor, ambos na luta por fazer vencer o amor acima até da Morte, a personagem mais encantadora de todas que conhecemos.

A obra se impõe pela cumplicidade que faz emergir com quem a assiste. Eu, que nasci no interior de Pernambuco, me deletei com expressões que há tempos não mais ouvia. “Taiado, bulisse, mangãno d’eu e de butuca na gente” são algumas deliciosas expressões próprias dos cafundós deste Brasilzão. O próprio título da peça já brinca com a irregularidade do letramento corrente. Mas, para além de todo um linguajar que traz como maior marca o ritmo veloz e a graça por vezes cheia de malícia, a dramaturgia se desenvolve despertando muita curiosidade sobre o aguardado desenlance do azar que leva um rapaz às terras do mundo abaixo. Contando com uma direção de arte que é simplesmente primorosa, da maquiagem aos figurinos cheios de texturas, cores e sobreposições, criações do próprio encenador Marcos Leonardo, a maior surpresa nesta transposição videográfica é mesmo o uso de cinco telas simultâneas, uma para cada intérprete, com revezamento parcial entre elas, como se fossem molduras de quadros antigos e, por vezes, historietas animadas de folhetos da poesia popular.

A opção dá uma dinâmica muito interessante, permitindo até que os atores e atrizes contracenem mesmo quando não se têm fala. São as personagens vivas à nossa frente, dinâmicas, pulsando em meio ao diálogo falado, visual e musical. Aliás, toda a trilha sonora, do também autor e diretor musical Romero Oliveira, é um deleite na profusão de ritmos e arranjos vocais – enfrentando bem a dificuldade da gravação à distância de um com outro e o atraso temporal que a Internet causa –, com destaque aos números musicais românticos e em referência às “incelenças”, aquelas velhas sentinelas cantadas aos pés dos moribundos. A Casatória c’a Defunta transforma-se assim num dos melhores resultados que pude acompanhar em tempos de “teatro à la telinha”, mantendo o vigor da encenação original e ganhando novos contornos cheios de poesia, graça e ludicidade. Um espetáculo-vídeo (!) que pode ser conferido por toda a família, como quase sempre o teatro de rua prima por fazer.

*Jornalista, crítico, historiador e pesquisador do teatro.



___________________________________________________________________________________________________________




A CASATÓRIA C’A DEFUNTA

Cia. Pão Doce – Mossoró (RN)


Ainda que desta vez online, com cada um em sua casa, mesmo assim como é excelente essa chance que os festivais nos proporcionam de conhecer grupos teatrais estabelecidos nas mais diversas regiões do País. Para mim, foi incrível conhecer finalmente o trabalho da veterana Cia. Pão Doce, de Mossoró, em um espetáculo que nasceu como teatro de rua e este ano foi adaptado para o meio audiovisual.

E que bela adaptação! Muito tempo nos consumiu no início da pandemia com reflexões sobre se era ou não considerado teatro o que os grupos começaram a fazer nos meios digitais. Muito se aprendeu, muitas experiências foram desastrosas na transposição de uma linguagem para a outra, mas essa tal de Casatória, desse povo lindo de Mossoró, entra para a galeria dos experimentos cênicos pandêmicos que mais me impressionaram em 2020. Tudo foi acerto na adaptação.

O gestual (expressão corporal) do elenco foi todo repensado, levando em conta agora o advento novo de uma câmera ligada na sala de cada um. A direção não se esqueceu de cuidar dos olhares de cada personagem, olhares que passaram a ser pensados a partir do lugar em que cada um estaria na tela na hora dos diálogos. Cuidados que se transformam em verdadeiros carinhos com o público, que se sente respeitado, afagado, considerado.

Os figurinos (couros, rendas, redes, coletes, turbantes, lenços, cartolas) em tons terrosos, bem como a cenografia e os adereços, se deram muito bem na tela, com o necessário reestudo da iluminação, já que antes se tratava de um espetáculo de rua (apresentado em 115 cidades brasileiras desde a estreia em 2014). Alguns efeitos visuais abrilhantaram ainda mais a transposição, como o livro que pega fogo no prólogo da peça, anunciando de forma imagética a força do que será narrado pelos atores.

O texto também tem força poética de arrepiar, como na frase: “Ano vai correr como dia, hora como segundo, porque ligeireza de futuro não se para nem se adia.” Destaque também para as canções do espetáculo, de ritmos contagiantes e letras magníficas. “Avança, tempo. Avoa! Que a hora aqui já soa”, é, por exemplo, um dos estribilhos. Ao final do espetáculo, um dos personagens diz que “uma boa história é feita de alegrias, surpresas e...buuummm....de espantos”. Está aí, na fala de um dos atores, portanto, a frase que mais define as qualidades de A Casatória. Que bela e proveitosa experiê ncia online!


(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/



MANJERICÃO E MANJERONA - PETS EM COMBATE AO CORONA

PETS EM COMBATE AO CORONA

Fabiana Santos e Luiz Manoel – Canoas (RS)


Um espetáculo gaúcho que me surpreendeu bastante positivamente logo no início do festival. Os artistas independentes, da cidade de Canos, Luiz Manoel (direção geral, manipulação e dublagem) e Fabiana Santos (concepção, criação, manipulação, dublagem, dramaturgia e edição de vídeo), propuseram-se a falar do vírus COVID-19 para crianças, em um experimento cênico audiovisual voltado para a técnica da animação.

É muito arriscado cair no tom didático, professoral, rançoso, quando o tema é assim tão ligado a uma campanha de isolamento social e cuidados com higiene e saúde. Ao longo de minha extensa carreira de crítico, já vi verdadeiros equívocos que tratam a criança de forma pouco inteligente e com o dedo em riste. Fabiana e Luiz, de forma alguma, incorreram nesses erros. Tudo o que fizeram tem uma força criativa e inteligente que supera qualquer ranço que pudesse cansar o público e fazer parecer estarmos diante de uma peça de campanha ou atividade de sala de aula.

O ritmo é ágil, o humor é certeiro e de muito bom gosto, os personagens são consistentes. Claro, eles dão seu recado temático, pois é disso que se trata o espetáculo: alertar para os descuidos cotidianos que levariam a uma contaminação pelo vírus oportunista. Mas nunca esse recado se sobrepõe ao jogo lúdico, à diversão de uma obra comprometida antes de mais nada com a linguagem artística.

Os protagonistas são cão e gato, Manjericão e Manjerona. Complementam-se. Um dengoso, outro objetivo. Um medroso, o outro valente. E assim por diante. O texto dos diálogos entre eles é ágil e engraçado. Os trocadilhos referentes à palavra vírus e seus derivados, como viral e viralizar, são hilários na medida certa, sem exagero. A trilha sonora joga totalmente a favor da narrativa, auxiliando nos climas todos: romântico, aventureiro, suspense... A iluminação é outro acerto. Como não é um espetáculo teatral que virou produto digital (ao contrário, nasceu como peça audiovisual e poderá virar espetáculo presencial após a pandemia), o desenho de luz já foi pensado para ser visto nas multitelas, o que conta bastante a favor em um festival que, afinal, é todo online.

Muito me diverti com a personagem repórter de TV, um pássaro que está literalmente no ar, desviando de aviões que passam por ali o tempo todo. Sensacional. E é bem pensada a imagem do vírus ‘corona’ que perde a coroa se for atacado por água e sabão, virando apenas uma bolha. Parabéns aos criadores.


(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/

ALICE NO BRASIL DAS MARAVILHAS

ALICE NO BRASIL DAS MARAVILHAS

Sergio Tastaldi e Essaé Cia. – Joinville (SC)


Na conversa que o Fenatifs proporciona entre o crítico e os artistas, depois da exibição de cada atração online, já saí logo dizendo a esse grupo catarinense que eu nunca tinha visto, em minha longa carreira de 30 anos como crítico teatral, uma Alice tão brasileira. Como o teatro tem essa incrível capacidade de surpreender o tempo todo, não é? Quantas e quantas adaptações da obra imortal de Lewis Caroll eu já vi transpostas para o palco nessas três últimas décadas... mas nenhuma tinha tido a coragem e ousadia de mudar o coelho por um sapo cururu, a lagarta por um bicho preguiça e assim por diante.

O enredo é repleto de goiabas, pitangas, bananas, micos, tucanos, onças pintadas. Um frenesi de personagens divertidos e bem construídos, e absolutamente nada disso descaracteriza a força do original, ao contrário, a harmonia é visível e inquestionável, entre essas brasilidades todas e a vertiginosa trama de uma das figuras mais complexas da literatura universal, a menina Alice.

A adaptação foi toda criada por Tastaldi em 2011, sob encomenda do Teatro Folha, em São Paulo. Anos depois, em 2019, ele firma parceria com a catarinense Essaé e agora o espetáculo de luz negra (uma das especialidades do grupo de Joinville) vira produto audiovisual na era do teatro da pandemia. A técnica da luz negra encanta como poucas em uma sala de teatro, mas há que se reconhecer que também se presta muito bem às telas, seja de laptops, smart phones ou tablets.

O Chapeleiro Maluco se expressa falando expressões, trava-línguas e ditados regionalistas brasileiros – e fica tudo bem engraçado e coerente com o personagem. A Rainha de Copas, aqui Vitória, é maluca por futebol e representada na forma de bola. Destaque também para as letras brincalhonas das canções, com a da Onça Pintada, que rima tudo com ‘ada’. Não posso deixar de destacar também o cuidado de se colocar o objeto livro em cena, abrindo e fechando o espetáculo. Seja online ou presencial, seja teatro ou audiovisual, seja o que for, o que importa é que a essência e o sentido de tudo estão no livro original, na literatura, na palavra escrita que atravessa os séculos – e isso Tastaldi e a Essaé Cia. fazem questão de deixar bem explícito. Muito bom.


(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/

O PALHAÇO QUER IR AO CÉU

O PALHAÇO QUER IR AO CÉU

Grupo de Teatro Eureka – Feira de Santana (BA)


Este foi o caso em que, em 2018, quando participei presencialmente do Fenatifs, vi a peça no palco e, agora, em 2020, tive de avaliar sua versão na tela. Interessante como exercício crítico essa tarefa que despencou sobre mim. Em minha crítica ao espetáculo presencial, escrevi que havia ainda algo de amador na encenação e certa falta de ritmo, além de uma dramaturgia pouco consistente.

Incrível como, dois anos depois, e no formato audiovisual, o grupo achou a chave para dinamizar sua atração, repleta de gags e composta por um roteiro de ações, e não por um texto dramatúrgico. Com duração diminuída para pouco mais de 30 minutos na tela, a transposição para o digital ganhou ritmo. A concentração da trama em uma dramaturgia mais simples, direta e certeira funcionou e ficou bem melhor do que a dispersão e falta de foco que havia no palco.

Grande acerto da dupla de palhaços – Lion Guimarães e Ângelo Máximo –foi ‘conversar’ com a câmera muitas vezes, ainda que sem palavras, como se ‘conversasse’ com o público, afinal, havia o desafio de como criar uma interatividade com a plateia virtual. Deu certo, a meu ver. Eu me senti, do lado de cá, sendo levado em conta – e imagino que isso tenha se passado com todos os que assistiram à apresentação pelo YouTube.

Fragmentar bastante a trilha sonora também foi acertado. Aparecem temas instrumentais variados, aquela música típica de números de palhaçaria – e isso ajuda a não cansar, facilita no ritmo das ações dos dois atores – sobretudo aqui, em um audiovisual sem palavras. Quero comentar também sobre a solução final, em que o palhaço finalmente consegue chegar ao céu, como tenta fazer desde o início sem sucesso. A solução cênica é de uma simplicidade tocante, que não vou revelar, para não ser spoiler. Mas tem a ver com um recurso simples de cenografia, que mexe com a imaginação, faz a plateia imaginar, além de ser uma linda homenagem ao fazer teatral. Funcionou na tela como se fosse um recado para o público: “estamos aqui fazendo dessa forma, por contingências de momento, mas nosso lugar é o teatro – e, no teatro, é assim que se resolveria esta cena”. Achei lindo.

(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/

TROCA-SE HISTÓRIAS POR BRINCADEIRAS EM TEMPO DE PANDEMIA

TROCA-SE (!) HISTÓRIAS POR BRINCADEIRAS EM TEMPO DE PANDEMIA

Grupo Arretado – João Pessoa (Paraíba)


Mais uma grata surpresa para mim neste Fenatifs online. Os simpáticos paraibanos me contaram, na conversa que tivemos depois da apresentação, que não querem corrigir a concordância no título do espetáculo para o português adequado (teria de ser Trocam-se Histórias...), porque optam propositalmente por manter esse ‘coloquialismo’ popular. Discordei frontalmente, claro, porque nada justifica um erro desses no título do espetáculo, ainda mais infantil, cometido por um grupo formado por arte educadores e que volta e meia participa dos chamados Projetos Escola. Mas, enfim, cada um que sabe de si.

O que interessa mesmo, porém, é a pérola que eles têm em mãos. Um gracioso espetáculo que nasceu há 7 anos como monólogo e evoluiu para essa deliciosa atração interativa com uma dupla de palhaços contadores de histórias, o velho Dengoso (Edílson Alves) e o novo Pitoco (Matheus Henrique). Fiquei fascinado pela química entre os dois, pela calma e placidez com que atuam, numa parceria harmoniosa que foge das ações frenéticas de palhaços mais físicos. Tudo entre eles é pacato, como um encontro afetuoso de tio e sobrinho. Matheus, o jovem ator, tem apenas 14 anos e atua com muita segurança, empunhando seu acordeão com galhardia e técnica. Edilson, de 55 anos, é um veterano profissional do teatro, muito respeitado na Paraíba, diretor, dramaturgo, mestre e coordenador do núcleo de Teatro da Universidade Federal da Paraíba. Adorei conhecê-los e saber que seu grupo, o Arretado, está na ativa há décadas, mesclando peças adultas e infantis.

Meu papel é comentar o que vi na tela, já que este ano foi atípico para todos do teatro. E o que digo é que a transposição de linguagens foi adequada, aliás, muito adequada. Eles não simplesmente ligaram uma câmera diante de si. Tomaram cuidados. Sabiam que um produto audiovisual precisa de seguir certas especificidades. Parabéns. Não só se referiram várias vezes ao público por detrás das câmeras (o que nos faz sentir acalentados e presentes), como fizeram questão de contar a todos o quanto o espetáculo já viajou por muitas cidades antes da pandemia. Essa franqueza e essa honestidade, aliadas ao carisma da dupla, fazem a atração nos cativar do começo ao fim.

Trata-se de uma obra que precisa permanecer por muito tempo no repertório da companhia, pelo que significa de resgate de valores lúdicos antigos, as tais ‘brincadeiras de antigamente’. A proposta é falar de brinquedos artesanais de madeira, em contraposição ao mundo tecnológico em que vivem as crianças de hoje. E embalar as brincadeiras com músicas populares, ritmos bem brasileiros, jogos dos quintais de outrora. Funciona muito bem, porque atrai a curiosidade das novas gerações e afaga o coração saudosista dos adultos.


(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/


SHOW AVOAR

SHOW AVOAR

Minha Companhia – Belo Horizonte (MG)


Mais palhaçaria no Fenatifs, desta vez voltada prioritariamente para um público entre 3 e 12 anos, mas com potencial para encantar adultos, como aconteceu comigo. Janaína Morse (Palhaça Brisa) e Maria Tereza Costa (Palhaça Tecla) criaram este show online durante os meses da pandemia, portanto não é uma atração presencial que virou digital, ao contrário, já nasceu para ser exibida nas telas e telinhas. As duas fundaram seu grupo muito recentemente, em 2019, com muita vontade de mesclar palhaçaria com música. Aqui, em Show Avoar, conseguiram realizar uma pérola.

Logo de cara a gente já se apaixona pelas duas, pelo jeitinho mineiro, pelo carisma e pela química. Dá vontade de ser amigo delas. E isso, com certeza, é percebido pelas crianças do outro lado da câmera. Um jeito caloroso e efusivo de interagir entre ambas não nos deixa tirar os olhos da atração. Tudo muito simples, mas muito bem pensado e criado. Não são palhaças antagônicas, que tiram humor de gags de atritos e oposições. São afetuosas e se ajudam em cena, fazendo a graça brotar de outro lugar, de gestos cotidianos simples, de atitudes infantis típicas. Fazem as crianças se identificarem com elas, terem vontade de brincar e cantar com elas. A barreira do digital é vencida facilmente, quando o meio é usado com essa inteligência e talento.

Foi tudo gravado em casa, com uma proposital estética caseira, o que não significa que não capricharam nos figurinos (cores fortes, estampa xadrez, botões grandes) e na cenografia (um varal de lâmpadas, desses de festa no quintal, que ajuda a dar o tom de intimidade e brincadeira que elas querem). Como compositoras, elas costumam se sair bem em c rsos de música infantil de Minas – o que as encoraja a prosseguir. Mas também já compuseram paródias para adultos, que acabaram viralizadas na rede. Em Show Avoar, são lindas as letras das canções que falam de coragem (e medo), das diferenças e da hora de dormir. Vida longa para Minha Companhia.


(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/

CIRCUS A NOVA TOURNEÉ

CIRCUS, A NOVA TOURNÉE

Cia. Circo de Bonecos (São Paulo - SP)


Uma experiência bem sucedida de espetáculo que já existia há anos na forma presencial e teve de ser transposto para a linguagem audiovisual por força das circunstâncias. Graciosa homenagem ao circo e seus artistas mambembes, a peça é formada por esquetes, números circenses tradicionais, que desfilam um a um diante de nós, pelas mãos dos atores-manipuladores da premiada Cia. Circo de Bonecos, de São Paulo. Isso, a meu ver, foi um facilitador para a transposição, pois se trata de uma atração que não depende da linearidade de uma narrativa com começo, meio e fim. Assim, as crianças podem ver um pedaço (um número circense), descansar, ver outro mais tarde, pedir para os pais repetirem muitas vezes cada número, enfim, é uma estrutura que permite esse jogo com o espectador de multitelas.

O achado do diretor e bonequeiro Claudio Saltini foi saber reproduzir as gags circenses que povoam nosso imaginário, porém acrescentando a cada uma delas personalidade própria, humor diferenciado, trilhas surpreendentes, bonecos inusitados, criatividade a toda prova. Ele homenageia o passado, mas renova a linguagem. Na hora de virar esse “experimento cênico audiovisual”, a obra ganhou especificidades típicas do mundo cinematográfico e digital, como o cuidado com a iluminação, os closes e zooms na hora certa, o olhar firme e atento para a câmera (ou seja, para nós, desse outro lado). E, sobretudo, ganhou fluência e ritmo. Foi ótima a decisão de fazer um víd eo com pouco mais de 30 minutos. O tempo de duração é algo a ser revisto quando o teatro bate à porta e pede hospedagem no meio audiovisual – e Saltini espertamente sacou isso.

A participação de Saltini em um chat de conversa do Fenatifs foi muito especial e merecia ter sido vista por mais gente. Ele falou com propriedade e carisma sobre esse momento ‘pandêmico’ em que cada artista dos palcos teve de aprender a se virar como pôde. Seus relatos foram preciosos e a humildade de expor suas dificuldades técnicas e aprendizados serviu de alento para todos os que o ouviram. Obrigado, parceiro.


(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/

CIRCO_NA_LINHA

CIRCO NA LINHA

Núcleo Circense da Cia. Cuca de Teatro – Feira de Santana (BA)

Tiro meu chapéu para a Cia. Cuca por manter esse núcleo circense. É tão importante estimular a linguagem do circo entre as novas gerações. Parabéns. Tive a chance em 2018 de conhecê-los presencialmente no espetáculo ao ar livre Misturaê. Falavam de misturar, de aceitação, de diversidade. Agora, totalmente na versão online, em Circo na Linha, mostram diante da câmera suas habilidades de picadeiro.

Os números são bem tradicionais, mas eles acertaram no tempo de duração (não poderia ser muito longo, senão ficaria cansativo e repetitivo) e também foram felizes ao incorporar a câmera (o olhar para a câmera) em suas apresentações, num diálogo direto com o público em suas casas. Por exemplo: as argolas e malabares (bastões) surgem da câmera. Eles estendem a mão bem próximo da câmera e pegam o objeto. Grande sacada. As bolinhas também são jogadas como se atiradas por algúem por detrás da câmera. Esse tipo de linguagem do audiovisual é importante, senão ficaria apenas uma sequência de números filmados de forma estática e sem interatividade.

Acertaram também na trilha sonora, ao mudar de canção instrumental a cada gag, a cada apresentação. Isso ajuda a mexer no clima, a não cansar. Apenas no número dos malabarismos é que a música poderia ter sido trocada mais vezes, um tema para argolas, outro para bastões, outro para as bolinhas. Ajudaria no ritmo da apresentação. Efeitos sonoros também costumam ser bem aliados nos números circenses – deveriam pensar nisso também.

Gostei também que há humor na mestre de cerimônias, quando ela tenta se contorcer e diz que não é sua praia. Deveria até ter mais humor no texto dela. Poderiam ter brincado mais com essa figura da ‘hostess’ do circo. Destaques para a moça com perna de pau dançando samba e jogando capoeira. E também para as gags físicas da dupla de palhaços ao final (embora o número pudesse ser enxugado um pouco). Destoa dos outros números o do contorcionista, porque é arrastado, demora para acontecer e, quando acontece, o jovem faz poucos contorcionismos.

Sugiro que, se houver outra chance de fazerem apresentações online digitais sem público, que aumentem ainda mais os ‘truques’ e brincadeiras com a linguagem audiovisual. Criatividade essa turma do NUCCA já mostrou que tem. Só falta confiar mais ao integrar o que sabem fazer no palco com essa nova linguagem digital que a pandemia nos forçou a adotar.


(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/


DA TERRA À LUA - INSPIRADO NA OBRA DE JÚLIO VERNE

Da literatura fantástica ao teatro online, o desejo de chegar à lua

Companhia paulistana Sabre de Luz Teatro investe em obra de Júlio Verne abordando o confinamento no espaço

Por Leidson Ferraz*


Confesso minha inabilidade em apreciar histórias de viagens espaciais, ainda que eu tenha me encantado com a turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo na sua ida à Lua. Mas nunca fui fã do gênero, nem mesmo do Star Wars e sua retumbante bilheteria nos cinemas. Talvez me falte curiosidade, espírito de aventura às galáxias ou mesmo o perfil de perscrutador a lugares quase que totalmente desconhecidos. Tudo isso é para avisar de antemão que o espetáculo Da Terra à Lua, da Sabre de Luz Teatro (companhia paulistana em atividade desde 2013 e cujo nome nos remete àquelas espadas luminosas do filme norte-americano) não me ganhou neste 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana).

Para além da minha chatice de achar maior atrativo na trama apresentada – uma cientista que concebe uma cápsula metálica para chegar ao terreno lunar em companhia de um capitão que não queria estar ali –, há indícios que considero problemáticos nas peças voltadas às infâncias e mesmo adultas. A principal delas é a falta de um impulso que justifique motivações internas das personagens para criar maior cumplicidade conosco. No prólogo em pantomima, por exemplo, não sabemos a razão daquela movimentação que nem mesmo apresenta bem as figuras e aparenta contar episódios e intenções que só com a projeção de diferentes ambientes poderiam ficar mais claros.

Quando finalmente há o encontro da dupla protagonista, começamos a ver os embates entre uma mulher cientista com a cabeça no espaço e um capitão cético àquela necessidade de viagem à lua. Antagonistas nas opiniões, eles passam a se apoiar quando, presos na nave guiada por um cérebro eletrônico falante (voz em off), têm de enfrentar os desafios de sair da órbita terrestre, a ausência de gravidade e de oxigênio, além da incerta trajetória que os leva avante. A expectativa e curiosidade sobre o que vai acontecer aumentam, mas as surpresas, se elas vêm, não têm força suficiente para transformar o tudo mais em interessante.

Da Terra à Lua, mesmo sendo um vídeo com imagens caprichadas, parece carecer de maior aventura, certa fantasia inusitada, humor até e, especialmente, novidade no desenrolar da trama, ainda tão presa às mudanças da engenhoca em cena e ao embate verbal das duas personagens. É como se faltasse um molho especial, talvez novas personagens e mais reviravoltas. Segundo depoimento do próprio grupo, o projeto do espetáculo em sua transposição à linguagem fílmica é bem mais audacioso e, além de contar com outro ator no elenco, que talvez possa criar conflitos mais vigorosos à peça, propõe uma interação muito convidativa às crianças que o irão assistir.

Mesmo assim ainda há valores no empreendimento desde já, não só por trazer à cena uma adaptação de obra do francês Júlio Verne (literatura fantástica premonitória, escrita antes do homem pisar na Lua!), mas por estreitar as linguagens com o cinema de ficção científica, dando tons mais grandiloquentes ao produto, algo que os efeitos de luz acompanham bem. Isso sem contar os ótimos enquadramentos de câmera que potencializam a sensação de confinamento da dupla, tema tão recorrente no momento. Já os atores Joyce Salomão – também adaptadora e diretora da montagem – e Cristiano Salomão interpretam suas personagens com desenvoltura, mas ela ainda pode transformar a cientista numa figura menos empostada e discursiva, algo que ele consegue com bem mais facilidade. E no intuito de abordar vitórias e fracassos, a viagem, mesmo turbulenta, chega ao fim.

*Jornalista, crítico, historiador e pesquisador do teatro.



O MAIOR MENOR ESPETÁCULO DA TERRA

Centro Teatral e Etc e Tal (RJ) e o seu circo de pulgas internacionais: uma sofisticada brincadeira com a nossa imaginação

Por Leidson Ferraz*


A gente ri não só do que se diz ou faz, mas do que aquelas palavras e ações nos levam a imaginar. O Maior Menor Espetáculo da Terra, produção do Centro Teatral e Etc e Tal (RJ), é um exercício dos melhores à invenção. Afinal, o trio formato pelos atores Álvaro Assad, Márcio Moura e Melissa Teles-Lôbo nos mostra que é possível domar um internacional elenco de pulgas repletas de habilidades circenses e nós acreditamos piamente. E quem há de duvidar? A fala do mestre de cerimônias e apresentador Álvaro Assad chega a ser tão convincente que o inimaginável espetáculo, com texto absurdamente divertido e personagens para lá de exóticas, conquista pessoas de todas as idades. Hey!

Mestres da comicidade física, mas também verbal, os três artistas, cujo início de trajetória remonta ao ano de 1993, contam com esta montagem em repertório desde 2010 e o vídeo exibido durante o 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana), como registro de uma das récitas com público presente, não desmereceu a qualidade do que sempre conseguem aprontar no palco. Tudo é muito bem escolhido, da direção de arte à precisão verbal e gestual, da trilha sonora à iluminação, o que resulta numa encenação sofisticadíssima. O circo de pulgas é uma arte cujos registros vêm do século XVIII na Europa, quando circenses, em plena sociedade onde hábitos higiênicos ainda deixavam a desejar, investiam em truques mecânicos para alimentar a ilusão da plateia sobre o valor artístico dos pequeninos insetos. Hey!

O que mais conta é a performance do apresentador/domador, com seu discurso de convencimento, e Álvaro Assad transita neste papel com maestria – o espetáculo, inicialmente, foi pensado para ser um solo, mas ele acabou chamando seus colegas como divertidos partners –, proferindo frases cheias de suspense, grandiloquência e muito sarcasmo. O texto, de excelente qualidade, assinado por ele e Melissa Teles-Lôbo, ainda permite improvisos junto à plateia, e como não rir do desfile de tantas preciosas e minúsculas artistas, como o quarteto musical croata, o argentino PulGardel, as irmãs gêmeas Pulg Lee e Pilg Luu, da Oceania, ou a misteriosa Ponga, das florestas do Zimbábue, uma pulga vegetariana que se alimenta de um raro néctar de uma bananeira anã mas, ao sugar o sangue de um dos assistentes, numa das ótimas cenas da montagem, vira um monstro terrível. Hey!

Números de trapézio, equilibrismo, magia, força descomunal, voo de canhão-bala, acrobacia aérea e salto à distância são exibidos neste diminuto circo – aliás, é lindo o picadeiro concebido pelo saudoso Domingos Montagner, da Cia. La Mínima (SP), cheio de efeitos especiais com seus aparelhos construídos numa precisão verossimilhante. O Maior Menor Espetáculo da Terra revela, assim, as possibilidades inventivas do circo e nos faz ver que a surpresa ainda é o melhor elemento de qualquer proposta cênica onde a ilusão, com o seu misto de sensações e sentimentos, da pura ansiedade ao susto mais aterrorizante, brinca com a própria poesia e o nosso exercício de imaginação constante. E ninguém sai ludibriado… Hey!


*Jornalista, crítico, historiador e pesquisador do teatro.

A SAGA DE JOÃO CAIXOTE

Mesmo com cortes na dramaturgia, grupo do interior baiano encanta com “A Saga de João Caixote”, sobre um menino-boneco predestinado a herói


Por Leidson Ferraz*


Do município baiano de Rio de Contas, o Grupo Teatro de Bonecos Vira Toco trouxe ao 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana) A Saga de João Caixote, versão transplantada para o vídeo do espetáculo teatral dirigido desde 2014 por André Mello, o grande artesão responsável pelos bonecos em cena. Trata-se de uma experiência bem familiar, com ele também dando vida a algumas personagens e à frente da escrita dramatúrgica (tudo indica que a partir da obra original de Fagner Saraiva), esta concebida em parceria com seu irmão bonequeiro e músico Alexandre Mello, criador da trilha sonora. A irmã Rosa Griô atua como atriz-manipuladora, tendo ainda a colaboração de Guilherme Mello na edição de vídeo. Na iluminação, Luciano Luz completa a equipe.

O que mais se evidencia nesta proposta é a confecção dos bonecos, todos de espuma, mas por vezes parecendo feitos de emborrachado, tamanha a precisão de suas formas esculturais, com destaque especial ao menino manipulado pelo próprio André Mello. De material tão frágil, mas de ótima artesania, o protagonista ganha expressões que lhe dão ainda mais vida, ou seja, é esta capacidade de conferir anima a um ser inanimado que encanta pessoas de todas as idades e em A Saga de João Caixote há momentos preciosos disto. São ótimas as vozes e a movimentação é precisa, ainda que o foco do olhar de algumas figuras solicite um melhor posicionamento (pelo menos para o vídeo apresentado).

Na trama, tudo é faz de conta. A historieta nos revela que os protetores da Lua desapareceram por conta de um Rei malvado, de bocarra e dentes enormes, e é o filho do casal, entregue ainda bebê a uma bondosa velhinha na Terra, quem tem a missão de afastar o tirano do poder e restabelecer a paz e, principalmente, a alegria colorida que também sumiu. Nesta fábula de heroísmo uma profecia precisa ser cumprida e elementos singelos e mágicos aparecem com frequência. No entanto, a dramaturgia, assumidamente simples, sem grandes achados e surpresas, ficou um tanto sem pé nem cabeça em alguns trechos, carecendo de detalhes para a aventura fluir melhor.

Não que seja preciso esclarecer realisticamente tudo, ainda mais em se tratando de tão inventivo teatro, mas se é possível evitar absurdos que não colaboram com a plausibilidade, por que não fazê-lo? Alguns exemplos são a presença de peixes que levam o caixote com o bebê na porta (!) da velhinha, sem maiores razões mágicas, e o término do frágil duelo de adivinhação entre o Rei e o garoto, sem apontamento algum de como o conflito maior se resolve. As frases ditas, que poderiam ser mais buriladas, também merecem revisão mais cuidadosa, afinal, para além da visualidade, se o teatro de formas animadas prima pelo apuro dramatúrgico, o deleite passa a ser bem maior para os públicos de todas as idades.

No debate com o grupo acabei descobrindo que o projeto em vídeo, além dos problemas de edição (por razões diversas, a começar da falta de verba para tal) nem saiu como o previsto, não só pela carência de mais manipuladores – a presença da personagem Cabra Rita, por exemplo, pede uma vivacidade maior –, mas também pela necessidade de duração da obra, o que ocasionou cortes na história que a fragilizaram ainda mais. No entanto, para além destes aspectos, o que vale mesmo é a identificação certeira que o cativante menininho de sete anos com cabeça de lua deve ter causado nas crianças que o assistiram, tendo por companhia uma cabrinha e um caixote de madeira voador para sua saga. E assim tudo virou acordo para a brincadeira…


*Jornalista, crítico, historiador e pesquisador do teatro.


O BARÃO NAS ÁRVORES

A rebeldia de um menino que, do topo das árvores, prioriza novas experiências

Duo Coletivo (BA) adapta obra de Ítalo Calvino para o teatro infantojuvenil

Por Leidson Ferraz*


Escrever críticas de teatro não é fácil. Principalmente quando uma peça nasce tendo por fonte uma outra obra artística que não conhecemos de antemão. Se já cobram do crítico “saber quase tudo”, imaginem como fica a nossa cabeça quando nos deparamos com um espetáculo que tem como origem um livro famoso ainda não lido por nós. Pior ainda é quando vamos a um debate de teatro sem nem ao menos conhecer a ficha técnica da peça vista. Foi o que aconteceu comigo neste 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana) com o espetáculo O Barão nas Árvores, do Coletivo Duo, de Salvador (BA). Como o vídeo apresentado não trouxe nenhuma referência aos profissionais envolvidos, fiquei a ver navios… Ou melhor, a ver apenas árvores, livros e meninos…

O espetáculo, um solo do multiartista Marcos Lopes, que canta, conta e toca instrumentos com muita simpatia, narra a inusitada experiência do garoto Cosme que, contrário à pressão familiar e ao sabor do escargot que seu pai Barão lhe impõe na alimentação, decide viver na copa das árvores com seus livros, numa tentativa de encontrar nova convivência ao mundo que conhece. A obra apoia-se num romance fantasioso escrito em 1952 pelo grande escritor italiano Ítalo Calvino, do qual já aproveitei leituras inesquecíveis como As Cidades Invisíveis e Palomar. Mas não conhecia O Barão nas Árvores. Aliás, inicialmente, nem sabia que havia uma base calvinista no espetáculo apreciado. No entanto, percebi que a composição dramatúrgica continha algumas preciosidades, mesmo ainda nem tão buriladas.

Afinal, o impulso rebelde do menino leitor ao procurar viver sobre as árvores, tão próximo à infinitude do céu e não mais voltando a pisar no chão, era uma metáfora potente desse nosso incontido desejo de alcançar um lugar melhor, um outro mundo possível, sonho não só dele mas de muitos, ainda mais em tempos tão difíceis. Apoiado num teatro narrativo e fabular, onde conta, vive ou mostra todas as situações ali expostas, o menestrel cantador tem carisma suficiente para nos guiar nesta poética aventura, mas o trecho em que insere a personagem João do Mato, um bandido que em contato com o menino fujão aprende o valor dos livros e da necessária honestidade com os outros, me pareceu um tanto deslocado, especialmente pelos momentos em que ele serve de notícia sensacionalista na imprensa ou nas redes sociais.

Depois descobri que a figura está mesmo na obra calvinesca (se entendi bem, a adaptação do próprio Marcos Lopes em parceria com Antônio Fábio transmutou parte da história, pois na obra original é o ladrão quem induz Cosme ao gosto pela leitura), mas na composição dramatúrgica ele não me pareceu com força suficiente para um deslocamento da narrativa principal. É o aprendizado do menino, em contato com outras personagens, o que mais nos cativa e, principalmente, as brincadeiras espaço-temporais que a encenação de Guilherme Hunder (um talentoso e profício diretor de obras infantojuvenis no teatro, também aqui responsável pelo figurino, maquiagem e adereços) permite, desestabilizando nossa atenção de vez em quando, mas sempre tendo como norte a presença do poético garoto como guia.

A começar de sua presença física, transfigurada num boneco negro, quando não há qualquer referência à sua cor, ainda mais em tempos de patriarcado baronesco. O mesmo acontece quando sua amiga e primeiro amor Viola sai em trânsito numa carruagem e vemos um caminhãozinho de feira sendo puxado em cordão no palco. Ou ainda na linda metáfora que faz o próprio narrador ao se questionar se é possível chegar a outros países pela copa das árvores, alargando possibilidades de tempo e espaço inimagináveis. Como recheio disso tudo, a assinatura que vem da cultura popular, não só no uso do figurino e adereços, com clara referência ao Reisado e às bruxinhas de trapo do Nordeste brasileiro, como também do cenário (vale apenas atentar para a sobreposição de fitas sobre fitas e a profusão das mesmas cores em repetição entre a cenografia de fundo e o próprio artista em cena).

Há ainda uma graciosa e original trilha sonora ao vivo e gravada (por sinal, muito bem dosada, tanto que me pareceu ter outro instrumentista na coxia), composições de Saulus Castro e direção musical de Luciano Bahia. Pena que o microfone utilizado nos faça ouvir a respiração do intérprete durante quase todo o tempo. Já a direção de movimento, assinada por Mônica Nascimento, e a preparação corporal, cujo trabalho inicial e inconcluso foi entregue ao brincante Lineu Guaraldo, também merecem melhor atenção, pois as danças e o gestual do Cavalo-Marinho podem dar ainda mais força e encantamento a tudo o que ali é mostrado/cantado/contado e, por que não, coreografado. O mesmo vale para a luz, sem assinatura mais autoral e exploratória, detalhes que só farão ainda mais potente os achados deste libelo ao meio ambiente.

Sem receio da profusão de palavras nos seus quase 50 minutos de exibição, O Barão nas Árvores resulta numa imagética e fantasiosa experiência e a cena final em que tantos meninos e meninas vão também subindo às árvores, sem mais querer descer, dão esperanças de que é possível que ainda acordemos para sonhos compartilhados (no debate, Marcos Lopes revelou que neste momento convida a plateia presencial para posicionar os bonecos em cada uma das árvores de papelão dispostas no palco), salientando que as letras estão espalhadas por elas, como a lembrar que através do aprendizado de informações, de experiências mesmo, podemos chegar às alturas com candura e imaginação. E que as árvores sejam realmente povoadas de gente e leituras, com certa urgência.


*Jornalista, crítico, historiador e pesquisador do teatro.


BORBULHANDO

Borbulhando com muita comicidade

Artista de rua leva sua arte de brincar com bolhas de sabão ao experimento em vídeo

Por Leidson Ferraz*


Acho que não há criança que não se encante com bolhas de sabão. Basta vê-las que todas correm para querer tocá-las, conduzi-las naquela dança lenta que fazem pelo ar e, por fim, explodi-las. As bolhas de sabão são realmente mágicas. Talvez pela possibilidade que nos dão de manipulá-las, de tentar domá-las sem a certeza plena do sucesso. Pois são elas que decidem para onde querem ir e podem sumir de repente. Com um simples sopro a mais se desfazem, ou seja, a bolha de sabão é um exemplo da efemeridade da existência. Aqui no Recife, por sinal, existe um espetáculo musical chamado Vento Forte Para Água e Sabão, texto de Giordano Castro e Amanda Sena, com direção de André Filho, pela Companhia Fiandeiros de Teatro, que conta as aventuras de uma bolhinha de sabão medrosa que conhece uma rajada de vento e este a convence a sair pelo mundo, mesmo com todo o receio dela pela sua fragilidade inerente. Um belo espetáculo de teatro para crianças de todas as idades.

Borbulhando Bolhas Gigantes, que integrou a programação do 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana), é um exercício cênico da pesquisadora Vanda Cortez, de Salvador (BA), que há cinco anos dedica-se a esta técnica específica e ainda pouco difundida. Enquanto espetáculo, ele está mais para um ato variado onde as estrelas são as bolhas de sabão e os diversos materiais que a artista, originalmente trabalhando em ruas e praças e agora se experimentando no vídeo, usa para fazê-las aparecer. Primando por uma comicidade que vem da palhaçaria, Vanda Cortez surge em cena já distribuindo bom humor na chamada que a traz ao palco, prometendo muito “risco”, “magia”, um pouco de “pilantragem” e uma habilidade impressionante ao tentar domar tantas bolhinhas e bolhonas que pipocam à nossa frente.

Mas, para além dos apetrechos que usa neste difícil mister, como arcos e quadros vazados, canudos para soprar e varas com cordões e redes, além de um borrifador de água que umedece constantemente o ar para tudo acontecer, o mais legal é perceber que a quase ilusionista enfrenta o erro com bastante desenvoltura e graça. Até porque, quando se trata do universo borbulhante, nem tudo sai como o previsível. A tentativa, a repetição, o erro assumido são elementos presentes em todo o show com uma sucessão de números com bolhas de sabão que vai da profusão simultânea de muitas delas até uma única em destaque, das minúsculas até às gigantes, gerando verdadeiras esculturas transparentes e que até são preenchidas com fumaça ou mesmo um objeto palpável dentro delas.

Ou seja, tudo é motivo para brincadeira, um certo suspense e, claro, muita diversão. Duvido que as crianças não fiquem encantadas (e até acredito que no presencial seja difícil contê-las no desejo de entrar em cena e fazer bagunça com tanta borbulha chamativa). Vanda Cortez, além de toda a sua habilidade em técnica rara para um espetáculo completo, no qual precisa entender ainda da temperatura ambiente e de elementos da química para chegar à fórmula ideal a ser usada, mostra-se muito à vontade em cena, com seu jeitão de garota descolada e moderna – o figurino é uma graça! –, parecendo mais uma menina irreverente que brinca na intimidade do seu quarto ou quintal (no caso, vinda do seu canto de rua ou praça).

Dos trechos mais legais, além da trilha sonora que pontua bem o clima de cada número, os momentos em que ela faz uso das próprias mãos para que as bolhas surjam quase como que por encanto e o engraçado corte de cabelo de espuma numa graciosa girafinha de pelúcia (já que na tela não se pode chamar nenhum espectador). Se há algo que não fluiu tão bem na apresentação, o número de magia dedicado a um pano que aparece e desaparece, um tanto descontínuo à proposta do elemento principal, o sabão, e o arremate final, quando poderíamos nos despedir da “bolheira ilusionista” com uma inventividade bem mais poética e graciosa. No mais, só curiosidade e puro encantamento. Ploc!

ÁFRICAS

Mesmo com uma bela coleção de histórias, “Áfricas”, do Bando de Teatro Olodum, não foi o que esperávamos

Por Leidson Ferraz*

Trinta anos de palco impõem respeito. E o Bando de Teatro Olodum, além de possuir tamanha longevidade, é sinônimo de orgulho brasileiro por investir numa cena preta que reafirma a importância da ancestralidade e o enfrentamento contínuo ao preconceito racial. Primando por uma trajetória que já produziu obras inesquecíveis que tive o prazer de vê-las presencialmente, a exemplo de Cabaré da RRRRRaça e Ó Paí, ó!, até hoje apenas uma única de suas montagens foi direcionada às infâncias e juventudes, a mitológica Áfricas, com texto do próprio grupo em parceria com a também diretora Chica Carelli. Pude conferir a peça ao vivo em 2011, na programação do XI Festival Recife do Teatro Nacional, no suntuoso palco do Teatro de Santa Isabel, mas a encenação existe desde 2007 e, segundo alguns de seus integrantes, manteve apresentações contínuas até 2019.

A questão é que o vídeo inscrito neste 13º FENATIFS (Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana), que claramente quis homenagear e contar, pela primeira vez, com a presença do conterrâneo Bando de Teatro Olodum, a mais aclamada equipe do teatro baiano desde 1990, é apenas um registro documental do próprio grupo, feito com câmera parada, não bem posicionada, distante do palco e com captação de som ainda mais problemática. Certamente não é o que queremos ver num festival de teatro online em tempos de pandemia, num momento híbrido de linguagens, com os artistas migrando suas obras para o vídeo e tendo que se reinventar quase que completamente. Uma pena!

Tal questionamento foi feito pelo meu companheiro de crítica nesta edição, o paulistano Dib Carneiro Neto, e eu concordo plenamente. Ele assumiu não se sentir confortável em escrever sobre o que conferiu no vídeo (gravado em 2013!), mas eu, como guardei na memória algumas sensações e imagens que foram reavivadas pela exibição da montagem – mesmo reconhecendo todas as dificuldades que o produto videográfico oferecido nos impôs –, vou me atrever a rascunhar algumas considerações, me libertando, inclusive, de qualquer receio diante da imensa e tão elogiada trajetória do Bando de Teatro Olodum, grupo que mantenho uma declarada admiração e respeito.

Áfricas não se situa entre os seus melhores trabalhos, na minha opinião, mas é bem significativo por atingir um novo público para eles, crianças e adolescentes, além dos adultos que as acompanham, trazendo aquilo que o Bando tem de melhor: o seu teatro preto de “motriz cultural” (como diria o meu querido pesquisador Zeca Ligiéro), que une o contar, o cantar, o dançar e o batucar. A peça começa por apresentar tipos de uma Bahia atual e através de um garoto que precisa fazer um trabalho escolar sobre afrodescendência, desfila histórias contadas por narradores diferentes. São lendas e contos sobre o surgimento dos Orixás, do próprio ser humano e de personagens de uma África repleta de mistérios e surpresas. Não aquela estereotipada da vida selvagem ou da fome reinante, mas a das aldeias que se permite transitar com seres mágicos, ricos de ensinamento e superação.

A montagem é totalmente permeada por danças e música ao vivo, que enchem nossos olhos, poros e ouvidos com os volteios, saltos e a ginga dos corpos pretos e a sonoridade própria dos cantos aliados a instrumentos percussivos. É isso o que Áfricas tem de melhor, o compartilhamento do conhecimento ancestral que precisa ser (re)conhecido por todos constantemente. É nossa formação cultural muito além da influência branca europeizante. No entanto, mesmo com vários achados poéticos, de beleza plástica e também sonora (aliás, o Bando possui em sua equipe técnica verdadeiros deuses da cena, Zebrinha nas coreografias e Jarbas Bittencourt na direção musical, especialmente), além de trechos bem divertidos (destaco o ator Leno Sacramento na pele de um jovem rapaz mudo cheio de invenções), há excessos que poderiam ter sido aparados no resultado final.

A começar de todo aquele prólogo, que nos remete indissociavelmente a Ó Paí, ó!, com sua Bahia urbana, caótica, barulhenta, sem necessidade alguma ao que vai ser demonstrado a seguir e ao que mais interessa àquela dramaturgia, a sucessão de histórias apoiadas no mito. Parece que o improviso a que o grupo se dispôs para uma possível construção de personagens, acabou extrapolando para a cena final, sem razão de ser, mesmo que o arremate final necessite do aprendizado àquele menino e sua colega: há outras marcas históricas para a África muito além da escravidão. Outro detalhe que também acho que atrapalha é a música constante a reger todas as tramas apresentadas. Não há silêncios praticamente e assim os atores são obrigados a elevar o tom das falas – um desperdício é o Feiticeiro de Dia e de Noite berrar tanto, quando poderia investir numa sinuosidade muito mais aterradora –, o que torna grande parte da montagem gritada, uma pena. A exceção fica para o trecho final, pausado e comedido pela atriz Cássia Valle já no uso de um imprescindível microfone.

São arestas como essas que se fizeram ver com mais evidência no frágil vídeo apresentado – eu, por exemplo, recordo da minha pele arrepiada quando conferi presencialmente o espetáculo, ciente de toda a pesquisa empreendida pelo grupo para chegar àquele resultado final. Mas tal atrapalho nos faz lembrar que o teatro é, de fato, esta arte que se faz e se desfaz constantemente, nunca repetível por completo. Espero não ter sido injusto com o meu querido Bando de Teatro Olodum nesta também precária apreciação, e assim como Áfricas faz uma bela reverência a divindades como Oxumaré – linda a cena dos corpos enfileirados, com os braços juntos, em contraluz, numa analogia ao príncipe-serpente –, a Omulu, Ogum e Iansã, símbolo maior da arte que se transforma, fico na torcida para que o espetáculo volte a se exibir ao vivo com toda a sua grandiosidade, que eu sei que é inerente ao trabalho deste importante coletivo baiano. Afinal, vidas pretas importam e suas histórias originárias também.

*Jornalista, crítico, historiador e pesquisador do teatro.



_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________



ÁFRICAS

Bando de Teatro Olodum – Salvador (BA)


Não demorou muito para que surgisse na programação do Fenatifs Online 2020 a gravação de um espetáculo feita nos moldes pré-pandemia, ou seja, tipo teatro filmado de forma estática, para uso em inscrições nos festivais e mostras. Uma câmera só, parada na frente do palco, registrando a peça. Mero registro memorialístico de uma arte efêmera. Ainda que de qualidade técnica quase sempre pífia e sem os devidos cuidados com enquadramento, som e luz, eram e ainda são importantes documentos audiovisuais. Mas quem aguenta assistir, se não for como objeto de estudo?

Assim era a gravação de Áfricas, disponibilizada para exibição neste festival. Uma gravação feita em 2013 (!), com grande parte do elenco já fora do Bando de Teatro Olodum, som péssimo (eco do teatro!), câmera parada, vultos de cabeças da plateia passando na frente da imagem, iluminação criada para o palco não para a tela. Enfim, algo para se emocionar como memória do teatro, não como atração de festival.

O consagrado Bando de Teatro Olodum, de Salvador, existe desde 1990. Merece todo o nosso respeito pelo que representa de divulgação, afirmação e consagração da riquíssima cultura afro-brasileira, formadora de nossa identidade. O Brasil seria hoje bem mais feliz e livre de preconceitos se houvesse um Bando de Teatro Olodum em cada cidade. Vendo o vídeo apresentado, percebe-se o quanto Áfricas – primeiro e único infantil da extensa carreira do grupo – tem uma carga dramática potente, uma trilha com percussão de primeira linha, coreografias de rasgar o coração. Como eu queria ter estado presencialmente na plateia daquele dia dessa gravação. Percebe-se, no registro, a aprovação do público de todas as idades, com momentos de silêncio respeitoso e emocionado e outros de gargalhadas deliciosas.

Na conversa que tivemos com o grupo depois da exibição, eles nos contaram que existe outro registro em DVD, nada amador, com preocupações estéticas audiovisuais, mais de uma câmera, tudo pensado para o formato digital, porém, é um material que não pode ser usado em eventos públicos por questões de liberação de direitos.

O fato é que todos nós estamos vivendo momentos de aprendizado. Depois que a pandemia praticamente forçou os artistas de teatro a migrarem para essas experiências audiovisuais tateantes, promover um festival online não pode mais significar apenas recolher material de peças registradas em vídeo, porque, salvo raríssimas exceções, são de qualidade que afasta o público da frente da tela, cansa o olhar, mexe com nossa paciência de espectadores. A pandemia fez os grupos teatrais correrem atrás de mais qualidade para esses registros, recriando suas peças praticamente inteiras, readaptando as linguagens. Claro, isso demanda tempo e re cursos, que muitos grupos não têm. Mas o fato é que, mal ou bem, esses novos experimentos é que deverão ter prioridade na hora das escolhas das curadorias de festivais onlines vindouros, já que dizem que é o formato online é algo que vai acabar ficando como alternativa cênica, mesmo pós-pandemia. Será? Seja como for, o aprendizado é constante, e estamos todos engatinhando nesta nova realidade do isolamento social. E ter o Bando de Teatro Olodum, com a memória de um infantil, no Fenatifs, é luxo dos luxos. Ao grupo, todo nosso respeito. Ao festival, louvores. É errando que se aprende. É fazendo que se transforma o mundo.

(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/


A FLAUTA DE PÃ

A FLAUTA DE PÃ

Cia Cuca de Teatro – Feira de Santana (BA)


E eis que os anfitriões do Fenatifs também surgem na programação com um resgate histórico de sua trajetória, em uma gravação feita no teatro, com público, muitos anos atrás, câmera parada etc. e tal. Vale o mesmo que já escrevi sobre o Bando de Teatro Olodum: esse tipo de registro tem seu valor de memória do teatro, uma arte efêmera, e serve para ilustrar a carreira do grupo. Mas, como atração em si, por mais que a qualidade técnica tenha aumentado no segundo dia de apresentação, o grupo correu o risco de não fisgar o público durante o tempo todo, afinal, é um público já tão acostumado ao mu ndo audiovisual mais dinâmico e mais preparado tecnicamente. Ninguém aguenta por muito tempo teatro filmado de forma estática, a não ser que esteja envolvido de alguma forma, inclusive afetivamente.

Como memória, faço algumas observações. Por exemplo, é curioso observar que se trata apenas do segundo espetáculo da trajetória da Cia. Cuca, e podemos ver que desde aquela época já havia um cuidado e capricho de produção que não eram comuns no teatro para crianças. Essa companhia baiana sempre encarou a arte de entreter as crianças no teatro com muito profissionalismo e seriedade. Ver um vídeo antigo, com o registro de uma peça que foi sucesso de público por algum tempo, comprova que o futuro só poderia mesmo sorrir para essa companhia tão dedicada e talentosa.

Como um dos críticos oficiais do festival, o que tenho a dizer também é que se torna impossível julgar um trabalho tão antigo (muitos atores nem são mais do grupo) e no formato de um vídeo feito sem preocupação artística, apenas como registro. Não teria sentido escrever uma crítica. Foi o que eu disse a eles em nossa conversa. Mas não posso deixar de registrar a força do texto de A Flauta de Pã, que resiste ao tempo, por suas frases tão bem construídas e sua força poética. Uma dramaturgia de qualidade.

A personagem Aurora diz, a certa altura: “O orvalho me escapa dos olhos. Eu só sei clarear chorando.” E o protagonista Pã, em sua caminhada em busca do amor, diz: “Eu só entendo o que eu sinto.” São diálogos líricos, que o mundo de hoje abandonou quase por completo, por isso é importante mostrar uma peça dessas às crianças de hoje. A poesia (aliás, também personagem da peça, na pele de uma das três musas) não pode morrer nos palcos. O humor também marca presença destacada no espetáculo, principalmente na personagem Furibunda, uma bruxinha que brinca com as palavras, como em “Era só o que me flautava !” Pontos para a Cia. Cuca – e que um dia volte a fazer presencialmente essa sua histórica versão de A Flauta de Pã – ou, se esse formato online for realmente permanecer em nossas vidas depois de 2020, que a cia. nos mostre então uma linda versão pensada especificamente para a linguagem audiovisual.

(Dib Carneiro Neto)

http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/feira-de-santana-fenatifs13/